domingo, 1 de fevereiro de 2009

" É noite e roubaram-me os olhos" por Ana Andrade

Nota da autora: Este texto foi escrito na sequência de um relato da professora Elisabete Gonçalves sobre uma notícia da morte de várias pessoas numa mesma casa, devido à guerra em Gaza, tendo sido encontradas algumas crianças vivas no meio de todos aqueles mortos…
«Foi extremamente inquietante imaginar as crianças feridas, rodeadas de mortos que lhes eram tão queridos, imaginar o medo aterrador, a imensa tristeza pela perda, a incompreensão e a revolta! Este texto é um grito! Um grito inconformado. Um grito desiludido. Um grito emocionado. Sabemos que não somos capazes de orientar os ventos, mas queremos ajustar as nossas velas...» (Elisabete Gonçalves)

É noite e roubaram-me os olhos

São onze horas e vinte e sete minutos. O sol queima lá fora. Estou sentado no chão da cozinha a brincar com um pedaço de madeira e um retalho de tecido que sobrou da confecção das calças novas do pai. A Mãe está ao meu lado, sentada na mesa da cozinha, a falar com a Avó que nos veio visitar. A esta hora estamos todos em casa: a Mãe prepara o almoço, os irmãos mais velhos voltam do trabalho nos campos para almoçar, a Avó ajuda a Mãe na cozinha e o Avô está sentado na sala a ouvir rádio. A pequena Souad está ao meu lado, a ver-me brincar. Tem apenas dois anos, mas já me olha como gente crescida. Fixa-me com os seus grandes olhos negros e mantém-se imóvel, como que tentando dizer-me que quer brincar comigo. Aceno-lhe e ela aproxima-se. Só falta o Pai. Não chega do trabalho e a Mãe começa a impacientar-se. Ela e a avó falam do assunto proibido: a guerra. Percebo-o pelos seus gestos, expressões e pelo ambiente pesado que tomou conta da cozinha.

Ouve-se o portão da rua abrir bruscamente e, inconscientemente, a Mãe leva a mão à barriga para sentir o seu mais novo filho que está para nascer. Vejo o Avô entrar na cozinha a correr e espreitar pela janela, para depois fazer sinal à Mãe e à Avó para subirem para o sótão. Não percebo o que se passa. A Mãe agarra na Souad e pega-lhe ao colo, a Avó chama-me e vamos todos para cima excepto o meu irmão mais velho que fica com o Avô. Continuo sem perceber o que se passa.

Estávamos a subir as escadas para o sótão quando volto para trás, num impulso, para buscar o pedaço de madeira e o retalho de tecido que abandonara no chão da cozinha. Ninguém repara em mim. Estão todos preocupados em levar os meus irmãos para o sótão. Quando chego à porta da cozinha, vejo um grupo de homens a arrombarem a porta. O Avô diz-lhes qualquer coisa que não consigo distinguir e o meu irmão mais velho trava-lhes a entrada. Trazem armas consigo e depressa derrubam o meu irmão e se infiltram na cozinha, onde começam por atirar ao chão as panelas onde a mãe fizera, com tanto cuidado, a comida para todos. Vejo o meu irmão sangrar pela cabeça e, de repente, começo a entrar em pânico. Os homens não fazem perguntas nem dão respostas, simplesmente continuam a destruir tudo o que lhes aparece à frente. É então que o Avô os tenta impedir e um dos homens atira sobre ele sem dó nem piedade. Vejo o seu corpo velho tombar no meio do chão da cozinha. O seu corpo. O seu corpo rígido, deitado no meio do chão, escorrendo um fio vermelho de vida pela cabeça. As suas mãos. As suas mãos a deixarem-se vencer e a deixarem abrir os punhos cansados. O meu avô. O meu avô morto.

O meu irmão debruça-se sobre ele e chora. Torna-se, de repente, num menino, tal como eu. Tem medo, mas a raiva nos olhos não permite que esse pavor transpareça. Quer mostrar-se forte! Quer defender a família!

Um dos homens que nos invadiram a casa aponta-lhe uma arma à cabeça. O meu irmão prostra-se de joelhos e pede piedade. Quer ele lá saber de honra e de coragem! Neste momento é apenas um menino com medo. Muito medo… Não quer morrer, é só isso que sabe. Os homens riem-se dele e os seus risos ecoam pela casa, entretanto vazia. Parecem autênticos atentados à humanidade. E, de repente, na casa onde reinava a paz, só se ouvem os gritos de desespero do meu irmão e os risos despegados de compaixão dos homens que nos destroem a casa.

É então que começam a espancar o meu irmão, indefeso. Vejo o sangue pintar todo o chão da cozinha e nada me parece real. Gotas de sangue saem-lhe da boca e misturam-se com o sangue do avô. Unem-se, misturam-se, enlaçam-se, confundem-se, fundem-se… De súbito, um dos homens agarra-o pelo cabelo e obriga-o a rastejar à volta da cozinha.

Quem são estes homens? Almas que se apoderaram de um corpo para se libertarem de todo o rancor que trazem consigo, matando e espezinhando os seus semelhantes? E actuam em nome de quê? Atrás de que Deus ou de que Governo ir-se-ão esconder para justificar a perversidade dos seus actos? Teria Alá ou qualquer outro Deus consentido com tanta atrocidade e desumanidade? Odeio-os. Odeio-os porque mataram o meu avô e humilharam o meu irmão. Odeio-os porque invadiram o meu lar e semearam nele o caos e a discórdia. Odeio-os porque se riem da sua crueldade. Odeio-os porque não são homens, são monstros! Odeio-os!

Um dos homens ordena ao meu irmão que arraste o corpo do meu avô até lá fora. E ele chora. Chora porque tem medo, e o medo tirou-lhe toda a candura do olhar. Chora porque o desespero é maior que o sentido de dignidade. Chora porque não quer morrer. O meu irmão agarra o meu avô pelos tornozelos e chora. Irritado, um dos homens bate-lhe com a arma nas costas e vejo o meu irmão cair por terra. Logo é levantado pelos cabelos e obrigado pelos carrascos a apressar-se. O meu irmão é obrigado a carregar o meu avô às costas até lá fora, assim como o Filho do Deus Cristão foi obrigado a levar a cruz até ao calvário. Deposita o corpo rígido do meu avô no meio do jardim e obrigam-no a colocar-se de joelhos. Depois, sem pestanejar, um dos homens dá-lhe um tiro na cabeça e o meu irmão cai por terra, com os olhos abertos e a cabeça voltada para mim. Por momentos, podia jurar que me observava e que chorava… Chorava… Chorava… Chorava. Um morto a chorar.

O medo fez-me subir as escadas e refugiar-me no sótão. A Souad faz uma birra porque não quer estar no sótão. Diz que o pó que lá se acumulou ao longo dos anos pertence aos mortos que não obtiveram paz depois de terem partido. Cisma que ouve todas as noites os gritos de desespero e escárnio de todos aqueles para quem a vida se transformou numa recordação. Não sei quem lhe disse tal coisa, mas o certo, é que está convencida de que se trata mesmo de mortos e não quer lá estar. Agacho-me num canto do sótão, mesmo ao lado da Mãe e da pequena Souad, enquanto ouço alguns dos meus irmãos, a Avó e a Mãe a chorarem porque ouviram os tiros. Porque de repente deixaram o seu medo da morte falar mais alto.

Ouve-se uma enorme explosão e sinto o chão debaixo de mim desabar. A casa, nosso porto de abrigo, acabara de se desmoronar e, com ela, toda uma família. Depois da explosão, os corpos da Avó, dos meus irmãos… Os seus corpos que jazem. Os seus corpos que não mais voltarão a ver a luz. Os seus corpos.

A Mãe está deitada ao meu lado e tem a pequena Souad encostada a si. Ouço a sua respiração começar a abrandar. Sangra. Vejo sangue a sair-lhe das saias e percebo que perdeu o bebé. Que perdeu o meu irmão! Reparo, ainda, numa ferida que lhe abre o peito. Arrasto-me por debaixo do entulho para junto dela e, com as minhas mãos pequeninas, tento estancar-lhe a ferida que jorra do seu peito. Mas o sangue não pára de jorrar e as minhas lágrimas misturam-se com aquele líquido vermelho que lhe dá vida. Tenta falar comigo, mas não consegue pronunciar nada. Sangue começa a manchar-lhe a boca e respirar torna-se-lhe mais difícil. Olha-me e noto que tenta sossegar-me com o olhar… Estende, a todo o custo a mão, e agarra na minha. Momentos depois, o ar deixa de entrar-lhe no corpo, o sangue começa a jorrar-lhe pela boca e pelo peito, imparável, e os seus olhos perdem-se no vazio. As minhas mãos não chegam para estancar-lhe a ferida que lhe abre o peito. As minhas mãos não são suficientes… De repente, já não olha para mim, já não me agarra na mão. Tento que fale comigo porque, de súbito, o silêncio dá-me medo, mas ela não responde. Temo que a tenha magoado enquanto tentava estancar-lhe a ferida com as mãos. Temo que esteja zangada porque desrespeitei uma ordem sua e fui buscar o pedaço de madeira e o retalho de tecido à cozinha. Temo que esteja tão zangada que não mais me fale, não mais me olhe… E sinto-me só. Porque se calou ela? Imploro-lhe que não se zangue comigo e prometo-lhe que nunca mais lhe desobedeço. Mas ela não me responde… Os seus olhos parecem aves a afastar-se para o horizonte. A cor e a vida escorrem-se-lhe do olhar ao mesmo tempo que as aves se afastam. Levaram-lhe os olhos para longe e não mais voltarão! Um último suspiro solta-se-lhe da boca e a sua mão cai. Os seus olhos deixam de estar fixos em mim e perdem-se no vazio. Perdem-se no vazio… Perdem-se no… Perdem-se… Os seus olhos levados pelas aves. Os seus olhos.

Depois da explosão, o silêncio. O silêncio. Não sei quanto tempo passou. Só sei que quando o Pai apareceu e começou a vasculhar nos escombros, juntamente com muitos outros homens, já anoitecera. Ouvia-o chorar. Algum tempo depois, olhei para cima do monte de entulho que tinha à minha volta e vi surgir uma luz. Tinha sido encontrado!

De todas as pessoas que se encontravam na casa, poucas foram resgatadas com vida, incluindo eu e a pequena Souad. Ainda hoje me lembro dos olhos da Mãe e essa imagem não me sai da mente: olhos vivos e amedrontados que, de repente, deixam de me olhar e de estar de encontro aos meus, para se perderem no vazio. Só me lembro dos seus olhos e do sangue que pintava tudo de vermelho. E só consigo odiar aqueles homens que ma tiraram. Só os consigo odiar e desejar que aconteça com as suas famílias, o mesmo que aconteceu com a minha: que se despedacem! Deixei de crer. Deixei de acreditar em Alá. Deixei que a sede de vingança tomasse conta do meu corpo frágil e pequeno. Vou lutar, vou fazer guerra, porque de repente a paz deixou de fazer sentido para mim.

São sete horas e catorze minutos, é noite, e só consigo odiar aqueles homens que roubaram os olhos da minha Mãe e os encaminharam para o vazio… Aqueles homens que me arrancaram os olhos.

Ana Andrade

2 comentários:

Latitudes disse...

Ana, é impossível ficar indiferente a este teu fantástico texto. Estou sem palavras. As tuas falam pelas minhas.

Um grande beijo

Anónimo disse...

O texto está fantástico. Só é revoltante, o facto de representar a realidade de tantas crianças no médio oriente e noutras partes do mundo. É um texto destes que nos faz pensar se realmente estamos a dar o devido valor à nossa vida e se não poderíamos fazer mais para ajudar outras.