segunda-feira, 16 de junho de 2008

Concurso Literário - 1º lugar (ensino secundário) "Desfecho" por Cláudia, 11º F

Pelas sombras ia avançando, os ombros arqueados e balouçando, a cara altiva, as orelhas arrebitadas e o ouvido aguçado. Só os olhos se viam, luzidios na noite. A luz amarelenta dos candeeiros neles reflectida dava a impressão de um par de olhos doentio. As sapatilhas chiavam no pavimento marmóreo. Ele miava. Seguiam os dois. Paralelamente sem saber. Os dois ignorantes da existência de cada um. As dez horas tangeram no sino da igreja. O corpo esguio da Joana parou. O gato miou novamente. Parecia que os chamavam. Veio então ele e pegando-lhe delicadamente afagou-lhe o pêlo. Ele era diferente. Não tinha cauda. Um triste acontecimento, um acidente. Ela era diferente. Não tinha olhos. Um triste acontecimento, um acidente. Ainda se lembrava apesar de anos já se terem acumulado. Com o gato no colo ele ia avançando pela noite iluminada pelos candeeiros já vandalizados e velhos. Tinha um carinho especial por aquele gato. Por ser diferente. Achava ele que o gato era especial. Sentia necessidade de o cuidar, de o tratar. A sua mãe passava a vida a dizer-lhe para deixar o gato partir para encontrar o seu fim. Era um gato velho. E não tinha cauda devido a um acidente. Já anos tinham passado mas o acidente tinha deixado as suas marcas. Amava o gato demasiado para o deixar ir. Tinha sido sempre o seu companheiro. Não o queria deixar ir, assim como o gato parecia não querer partir. Todos os dias se empoleirava no muro a fixar o horizonte. À espera de algo - pensava ele. Joana pensou ter ouvido a voz do seu irmão que a chamava. Então quando o Rui chegou à beira dela pegando-lhe no braço disse: Sou eu. Vamos para casa. Então ela foi com o Rui para casa. Rui levava-a para casa apoiando-a no seu braço e pensou há quanto tempo não ouvia Joana a cantar. Não que ela cantasse particularmente bem mas a forma como ela pronunciava as palavras era diferente. Fazia as palavras entrarem na mente das pessoas. Sentia-as e fazia com que as palavras fossem sentidas por quem a ouvia. Era uma forma infantil de as pronunciar mas toda a gente adorava. Há quanto tempo não a ouvia cantar! E há quanto tempo não a via a sorrir. Depois do acontecimento triste, do acidente, tudo mudou. Nunca mais cantou, nunca mais sorriu. Rui achava-a invulgar. Todos os dias Joana se apoiava na parede que encerrava a janela e fixava o horizonte. Não propriamente a fixá-lo visto que a Joana nada via. O Rui não sabia o porquê de ela fazer isso. Mas ela sabia. Ela esperava. A ligação foi-se estreitando. O gato saltou do muro. Ela transpôs a janela. Os pés na terra molhada do jardim deixavam pegadas lamacentas. Pegadas animalescas. Pegadas de um gato. O gato seguia, instintivo. A Joana também pois era cega. Passaram assim o dia. Cientes da inexistência de um do outro. E outro dia nascia. E a Joana fixava o horizonte. E o gato também. Os dois esperavam. E outro dia assim passaram eles. Cientes da inexistência de um do outro. O Rui lamentava a triste sorte da irmã. Joana vivia para a janela. E, no entanto, a janela só a brisa lhe trazia. Por vezes calma, por vezes furiosa. Mas só a brisa. A decepcionante brisa da ingrata janela face a tanta dedicação por parte da Joana. Então o Rui questionou a sua irmã o porquê de tanta infrutífera dedicação à janela. Ela simplesmente respondeu que, um dia, a janela lhe havia de dar aquilo por que esperava. O Rui achou, agora mais do que nunca, importante fechar a sua irmã num manicómio. Joana não podia estar bem. Mas ela não se inquietou. Ela esperava. Naquela tarde notou ele que o gato estava a tornar-se cada vez mais irrequieto. Talvez na ânsia da chegada daquilo que esperava. Não sabia o porquê. E decidiu como sempre não se preocupar com isso. Só o queria lá reter. Sempre que via o gato a debruçar-se para a parte exterior do muro, ele agarrava-o e impedia-o de partir. Só o quero cá reter – pensou ele. Mas o gato também não queria partir. Pois todos os dias voltava ao muro para esperar. Ali ficava. À espera de algo – pensava ele. No dia antes da partida para a sua nova residência, Joana pôs-se à janela. Sabia que o Rui estava em casa e que provavelmente lhe ralharia por ali estar. Ouviu dois sons distintos vindos da rua. O grito de rapaz. O chiar dos travões de um carro. Finalmente a janela tinha retribuído tanta dedicação. Joana, mais uma vez, atravessou a janela. Correu. Até que bateu em algo e caiu. Depois disso não houve mais nada. Ele olhou estupefacto para a rapariga de caracóis que se tinha atravessado à sua frente. Salvou-o. Mas e ela? Como estaria? Viu um rapaz sair da casa em frente. Abraçava-a, chorando. Não conseguia falar. Ainda olhava para o corpo prostrado na sua frente. Uma onda de culpa trespassou-lhe o espírito. Tinha sido ele o causador daquele acontecimento triste. Daquele acidente. O gato saltou do muro. E não tendo agora ninguém que o impedisse, nem vontade de ali ficar, partiu. Aquilo por que tinha esperado chegou. A Joana teve o seu desfecho feliz. O fim da sua agonia. O gato cumpriu o seu papel. Chegou o seu dia. Partiu. Partiu para encontrar o seu fim. O gato especial. O gato sem cauda.

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