Com a cerimónia adequada ela pegou no lápis. Começou a escrever. O lápis oscilando freneticamente para desenhar as palavras, a mão contorcendo-se para reter o lápis nos dedos. O lápis ainda se continha. Agora as palavras…Ai as palavras…! Se pudessem saiam a voar da folha. E isso seria trágico. A rapariga desenhava letras, letras que formavam palavras. Palavras com significados cruéis, maldosos e que incitavam a violência. Mas as palavras eram selvagens e lutavam para se soltarem do papel e, uma vez fora dele, não tornavam a voltar e eram extremamente perigosas. Uma palavra é um elemento poderosíssimo que quando a soltamos nunca mais é só nossa e perdura por ciclos de gerações. Nós morremos. Elas permanecem.
Então ela escrevia, com fulgor, com um ímpeto furioso. Tanto ódio impregnado que se reproduzia dentro dela. Com rapidez a desconfiança e o desespero atingiram-lhe o cérebro e quando lhe tocaram o coração transformaram-se em ódio puro. Corroeu-se assim um coração neutro, normal, indiferente, que poderia ter sido usado para o bem…
Ela escrevia. O papel começou a ficar manchado, as letras difusas, pois gotas atiravam-se dos seus olhos para a folha. Não lágrimas de tristeza obviamente. Mas de raiva e de frustração.
Já a mão lhe tremia e mesmo antes do suspiro final parou. Simplesmente parou. Olhou em frente. Uma tela aparecia defronte dos seus olhos. E lentamente a circundou. Era branca. Não. Era pálida. De uma palidez desconcertante. E só então viu. Pessoas. Não. Corpos. Acorrentados, sem vida, dilacerados e ainda com a expressão de medo no rosto, de terror, de dor. Apelos de ajuda mortos nas suas bocas ligeiramente abertas, algumas descaídas, outras até sem queixo e lábio inferior. Mortos, pois aos corpos faltava-lhe o fulgor, o sopro, o suspiro, o ar. Esse mesmo fulgor, sopro, suspiro e ar próprio dos vivos. E então, sentiu-se acorrentada. Correntes esmagavam-lhe os pulsos. Nada se ouvia. Até o som dos próprios movimentos era inexistente. Não gritou. Não lutou. Aceitou. Morria conformada com o fado para si escolhido. Só uma coisa ainda vivia. O ímpeto da escrita. Não furioso, não raivoso. Ondeante, delicado e suave. Teve a sua redenção. O seu momento de expiação. Conseguiu purgar o seu coração. E então ali ficou. Não torturada, não dilacerada, não desmembrada. Branca.
terça-feira, 14 de outubro de 2008
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2 comentários:
Bem, já conhecia o texto e o que disse à Cláudia digo aqui: o texto está bastante bom.
É só jeito para isto. =)
(Agora vou fazer o longo trabalho de casa para português) =)
Cunha 12ºF
A Cláudia consegue escrever com uma criatividade incrível! As histórias, os promenores fascinantes que nos permitem "ver" o que descreve e sentir o que a personagem sente. Digno de um grande e experiente autor! Não é qualquer um que consegue isso.
E consegue sempre juntar um pouco de si e daquilo que a rodeia, aquilo que a influencia, nos seus textos... Uma frase, um filme, ou um nome que sirva de inspiração... E claro, algures tem sempre que aparecer gente morta! =P Que fascícinio por este tema!... ou já será vício? :P
Parabéns N.N.! ;-)
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